sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Desafio 52 semanas de escrita #03 - Vazio



Olá, caro leitor, hoje trarei um texto de uma ideia que tive a alguns anos, nunca o transcrevi e tal ideia foi se modificando e expandindo ao longo do tempo. Inicialmente era um conto de horror onde um homem simplesmente acordava em meio a uma escuridão eterna, onde o clímax era o encontro com alguém em meio a essa escuridão, posteriormente quis expandir um pouco mais, acrescentando uma segunda situação. O inicio eu escrevi muito recentemente, pois senti que havia a necessidade de acrescentar um ponto de partida que justificasse como o protagonista sem nome chegou naquela situação. Enfim, espero que gostem.

Vazio

Ele estava cansado, muito cansado, não era um mero cansaço físico, mas também um cansaço mental, ele se sentia esgotado, angustiado, simplesmente não conseguia mais pensar em uma solução, era hora de desistir, de parar de se martirizar e finalmente descansar, mas ele precisava que fosse algo imediato. Ele olhou para os comprimidos que serviam para controlar a sua ansiedade e se perguntou, “quantos deles eu precisaria tomar para dormir imediatamente? Três? Talvez quatro?”, tomou cinco quase sem pensar, não se preocupou com as consequências, pois ele precisava finalmente descansar.

Ele acordou, não tinha certeza de quanto tempo dormira, mas sentia que tinha tido um sono profundo, inicialmente ele achou que ainda era noite, pois não consegui enxergar nada, uma escuridão intensa o rodeava, mas tinha certeza que estava acordado, tentou tatear a sua volta e de súbito se descobriu nu, ele tinha certeza que dormira vestido. Tateando ainda no escuro, tentou encontrar seu celular, porém ficou chocado ao perceber que não estava na sua cama, mas sim sentado, apoiado em uma superfície rígida e áspera, ele não via nada, absolutamente nada, mas deduziu que a superfície era um tronco de árvore?

Levantou se incrédulo, tateando o próprio corpo para ter certeza que estava de fato nu, com seus pés descalços sentiu a superfície macia do terreno, provavelmente estava sobre um grande gramado, mas como, ele se perguntava incessantemente, aquilo não fazia sentido. Ele continuava a não enxergar nada, estaria cego? Não, não era possível.

Com certo desespero decidiu pedir ajuda, chamando de forma pouco confiante, "por favor, alguém me ajude” "alguém, alguém por perto”. Mas quase tão intenso quanto à escuridão que o cercava era o silêncio, nem mesmo o som da própria voz parecia emitir algum ruído.

Mesmo sem saber para qual direção seguir, ele avançou de forma cautelosa, evitando tropeçar em obstáculos que pareciam ser grandes raízes. Após alguns minutos andando sem direção, imerso na completa escuridão e silêncio ele identificou um ponto vermelho ao longe, respirando aliviado, por ter a certeza que não estava de fato cego. Avançou, porém após alguns passos a consciência de que o ponto vermelho também avançava na sua direção paralisou o seu corpo. Ele forçou o olhar de forma incrédula e subitamente fez uma constatação assustadora, o ponto vermelho na verdade era um par de olhos, enormes e intensos olhos vermelhos.

Ele tentou correr e até mesmo gritar, mas cada fibra do seu corpo parecia estar paralisada, ele não conseguia se mover e o par de olhos escarlates avançava vagarosamente e quanto mais ele se aproximava mais nítido era a sua silhueta, era um homem alto e forte, também estava nu. Enfim o grande homem com olhos vermelhos parou a poucos centímetros da sua face. Não houve nenhuma tentativa de comunicação, mas os intensos olhos se mantinham fixos nos seus.

Por alguns segundos nada ocorreu, mas subitamente o grande homem tocou o seu peito, o toque era frio, o fazendo arrepiar por um instante e de forma surreal a imensa mão entrou no seu corpo, ele pode sentir os dedos tocando o seu coração, o envolvendo e o segurando de forma filme. Ele sentiu um desespero intenso, seu coração batia de forma acelerada e sua mente não conseguia absorver o que estava acontecendo.

Por um segundo ele sentiu o último pulsar do seu coração e de forma lenta e aterradora o grande homem retirou a mão do seu peito, segurando de forma firme um grande e ainda pulsante coração, nesse momento ele enxergou de forma nítida e clara o ser em sua frente, a visão era ainda mais assustadora que o vulto anterior, seu corpo era forte e definido, porém era inteiramente negro e não havia nenhum órgão genital ou mesmo pelos, seu rosto era duro e sem feições, não havia boa, nariz ou orelhas, apenas os intensos olhos vermelhos.

Por um breve momento o homem sem rosto se manteve imóvel olhando-o intensamente, mas subitamente se virou e começou a andar vagarosamente, como se nada ao seu redor pudesse impedi-lo. Após ver o grande ladrão de corações se afastar, o homem percebeu que podia não só ver o seu algoz, mas também o local em que se encontrava. Era uma grande planície estendendo-se por todas as direções, o local não apresentava cor sendo inteiramente cinza com tons escuros.

Aos poucos ele sentia que os movimentos do seu corpo estavam retornando, foi quando notou que na verdade havia dezenas de pessoas o segurando. Ele tentou se comunicar com elas, mas todas o ignoravam, eram homens e mulheres pálidos, com um olhar sem vida e um imenso buraco no peito. Nisso ele olhou para o próprio peito e identificou um orifício bem onde deveria estar o seu coração, não havia sangue, apenas um desconcertante vazio.

Um último homem, que ainda segurava o seu braço direito falou, de forma quase sussurrada.
 - Você ainda pode recuperá-lo, ainda pode voltar a sentir, pois ainda há um pouco de vida em você.

Ele olhou de forma incrédula para o senhor sem vida, se questionando se tudo aquilo era real. Não poderia ser real.
 - Como, como eu irei recuperá-lo?
 - Não perca tempo, você deve alcançar o ceifador antes que ele chegue às escadas.

Ele sentiu um forte senso de urgência percorrer todo o seu corpo, que o fez virar e avançar de forma rápida na direção que o ceifador negro tinha ido, sem mesmo agradecer o senhor de olhos vazios que acabara de ajuda-lo.

Ele não sabia por quanto tempo estava correndo, mas não conseguir avistar o seu objetivo a frente, a grande planície cinza estava cheia de arvores secas e mortas e eventualmente ele encontrava mortos vagando sem rumo, mas nada do gigante negro.

Por fim ele conseguiu avistar no horizonte uma imensa escada, que avançava sobre um vazio, como se houvesse um grande precipício no fim da planície, ele mais uma vez disparou na esperança de encontrar o grande homem sem rosto e por fim o encontrou, porém ele já tinha subido alguns degraus da escada, a voz do senhor sem via ecoou na sua mente “você deve alcançar o ceifador antes que ele chegue às escadas”.

Ele gritou em desespero, porém o grande homem sem rosto o ignorou, ele correu desviando dos homens sem vida que por algum motivo tentavam impedi-lo de avançar. Subindo os primeiros degraus com afinco, mas por um breve segundo ele olhou para baixo e percebeu que nada havia apenas um intenso vazio. Por um momento a visão o paralisou, mas o desejo de recuperar o seu coração o fez prosseguir.

Ele avançou por mais um tempo que não soube medir, não se atrevendo a olhar para trás, tão pouco para baixo, diminuindo o ritmo assim que avistou o homem sem rosto, ele estava em um pequeno patamar, agachado, com a cabeça abaixada e os braços levantados, como se oferecesse o coração ainda pulsante a alguém.

Foi então que ele a viu, uma figura pairando no vazio acima do ceifador, era uma mulher, completamente nua e indescritivelmente bela, porém pálida, branca como marfim, apenas os seus cabelos eram negros, mas tão negros que se mesclavam na escuridão e as únicas coisas que apresentavam vida era os seus olhos e lábios, que eram vermelhos e tão intensos, quanto os olhos do homem sem rosto.

Por um momento ele ficou hipnotizado com a estranha beleza da mulher, mas assim que ela se movimentou em direção da pulsante oferenda ele se lembrou do por que estava ali, subindo mais alguns degraus com certa urgência. Nisso a pálida mulher o olhou, fazendo-o parar, ela não moveu os lábios, mas falou diretamente em sua mente “vejo que ainda há vida em você, é algo raro alguém da sua espécie chegar tão longe, diga-me o que desejas?” Ele não conseguiu responder nada, mas olhou para as mãos do grande homem que continuava agachado, imóvel. “ah, você o quer de volta? Mas ele já não lhe pertence mais, agora ele é meu, meu suculento fruto, que saciará a minha sede por muitas noites, mas não vá embora ainda, já que chegaste tão longe eu permitirei que veja, será a sua última lembrança”.

A pálida entidade virou-se em direção ao coração, parte dele queria desistir, simplesmente deixar a sua vida ser ceifada e esquecer aquele pesadelo, mas uma pequena parte ainda resistia, ainda via esperanças, mesmo naquele derradeiro momento. Subitamente ele se viu correndo, avançando pelos últimos degraus, saltando sobre o homem sem rosto e agarrando com a mão direita o coração. A mulher não apresentou nenhuma reação, apenas o olhou enquanto ele caia no vazio.

Ele caia, caia no imenso vazio e de forma quase que automática ele recolocou o coração em seu peito, ousou olhar para cima e sentiu mais uma vez o olhar da bela mulher e ouviu baixinho em sua mente, “Viva, viva o quanto puder, não importa, no fim, eu estarei aqui, te esperando”.

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