sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Desafio 52 semanas de escrita #01- Espelho Negro



Olá, caro leitor, hoje trarei o meu primeiro conto, escrito em algum momento da minha adolescência, não tenho certeza do ano exato em que foi escrito, tampouco o que me inspirou a escrevê-lo, mas se a memória não me falha foi a minha primeira experiência criativa em uma época que nem cogitava em escrever de forma minimamente séria. O conto é uma espécie de suspense com uma pitada de horror. Infelizmente eu não encontrei o "manuscrito original" e reescrevi o conto de acordo com a memória que tinha dele, acrescentando mudanças onde achei necessário, mas essencialmente o conto se mantém o mesmo, principalmente na sua parte final. Caso eu encontre o texto original, sem dúvida o postarei por aqui.

Espelho Negro

O dia passava vagarosamente, fazendo minha ansiedade aumentar ainda mais, era mais um dia normal, tinha acordado cedo, me deslocado até o trabalho e estava cumprindo mais um tedioso expediente de dez horas e eram dez longas horas. Após isso ainda levaria uma hora até chegar em casa. Mas a espera estava terminando, logo o dia acabaria e finalmente poderia dormir e voltar lá, na mansão, no lugar onde eu retornava noite após noite nos últimos meses. Eu sabia que era apenas um sonho, mesmo assim eu ansiava por cada retorno, por mais uma noite naquele local que me revelava segredos antigos e inesqueciveis.

Enfim em casa, eu segui rigorosamente o meu ritual diário, tomei um banho, me alimentei e fui assistir algo aleatório na televisão, eu tinha que deixar o sono vir naturalmente, pois todas as vezes que forcei o pior acontecia e eu tinha uma noite sem sonhos. Mas hoje fui agraciado, adormeci rapidamente, foi uma questão de segundos após fechar os olhos e lá estava eu, no grande hall da mansão, com a sua arquitetura renascentista, de frente à grande escada que levava para o pavimento superior.

Nas primeiras noites eu me dediquei a explorar os cômodos do primeiro andar, encontrei uma grande cozinha e uma sala de jantar ainda maior com uma grande mesa de carvalho, no lado oposto havia uma sala de estar com uma lareira de tijolos aparentes, além de uma pequena galeria de arte com quadros e esculturas. Havia no mínimo três grandes quartos e mais alguns cômodos que não cheguei a explorar.

Certa vez encontrei um escritório, com uma grande mesa de mogno, sobre ela havia inúmeras ferramentas, mas o restante do ambiente era bizarramente preenchido por inúmeros animais empalhados, próximo a uma poltrona havia dois grandes corvos negros, atrás da mesa centralizado na parede tinha uma grande cabeça de alce e no lado oposto da sala um grande urso pardo ereto sobre as patas trapeiras. Estranhamente me sentia ao mesmo tempo desconfortável e atraído pelo local, parte de mim queria ficar e admirar os mórbidos troféus, mas a outra parte queria fugir do primitivo instinto de predador, por fim decidi nunca mais voltar naquela sala.

Havia muitos cômodos a serem explorados na misteriosa mansão dos meus sonhos, mas nas últimas noites estava voltando incansavelmente ao mesmo local, para a incrível biblioteca localizada no segundo pavimento. A biblioteca impressionava não só pelo seu tamanho, sendo quase tão grande quanto a suíte principal, mas também pela sua decoração sóbria e aconchegante. Havia três confortáveis poltronas espalhadas pelo cômodo, além de algumas escrivaninhas e dois grandes lustres pendentes iluminavam de forma suave o ambiente. Mas lógico que o que mais me impressionava eram as imensas estantes em madeira que ocupavam todas as quatro paredes.

Eu simplesmente me perdia no meio de tantos livros, havia desde os clássicos romances do século XIX a literatura contemporânea, contos arcaicos de fantasia e best sellers de qualidade duvidosa. Estava tudo ali, uma quantidade infinita de possibilidades, de histórias a serem exploradas e conhecimento a ser absorvido, eu estava imerso nisso, passei inúmeras noites explorando os contos de H. P. Lovecraft e em outras tentava compreender a filosofia de Mileto. A grande ironia dos meus doces sonhos na grande biblioteca era que estava lendo mais dormindo do que quando estava desperto.

Mas novamente, em mais uma noite onírica, lá estava eu na biblioteca, folheando de forma aleatória os inúmeros livros à minha disposição. Em um olhar despretensioso um livro em específico me chamou a atenção, ele estava na estante na parede oposta a porta, a A Divina Comédia, um livro que a anos tentava ler, mas nunca conseguia chegar até o purgatório. Me questionei se ali, na minha biblioteca particular no sonhar eu finalmente conseguiria finalizar a leitura do poema épico de Dante Alighieri.

Me aproximei com uma certa ansiedade da estante e peguei o livro com uma das mãos, subitamente um pequeno estalo foi produzido e a estante se moveu vagarosamente para a esquerda, revelando um grande corredor escuro, tão escuro que mal dava para identificar a sua extensão. De forma incrédula falei "Olá? Tem alguém aí?" eu sabia que não obteria resposta, afinal nunca nas inúmeras noites na mansão eu encontrei outro sonhador, mesmo assim eu repeti o questionamento "olá?" e nenhuma resposta foi dada.

Após alguns segundos de hesitação fui impelido pela minha curiosidade a entrar na câmera secreta, com uma lanterna em uma das mãos, que convenientemente encontrei sobre uma das escrivaninhas, e o livro de Dante na outra, avancei de forma cautelosa. Após alguns passos identifiquei objetos pendurados nas paredes, a direita havia uma grande espada e uma alabarda ainda maior sobrepostas, elas não apresentavam nenhum tipo de degradação reluzindo com a luz da lanterna, na parede oposta avistei um grande escudo em forma de cunha, no centro uma grande cabeça de um lobo branco se destacava. As palavras "Ataque" e "Defesa" estranhamente ecoaram na minha cabeça.

Continuei a avançar pelo escuro corredor, olhei de relance para trás e a entrada da biblioteca parecia distante, mas continuei avançando como se estivesse sendo chamado por algo desconhecido e no fim do corredor avistei um grande objeto, negro, tão negro que era difícil distinguir as suas bordas em meio a escuridão, era largo em sua base, mas afinava a partir do meio formando uma ponta no seu topo, o objeto era tão alto que quase tocava no teto de pedra.

Ele tinha uma superfície lisa e plana, em um primeiro momento nada se via além de escuridão, mas conforme me aproximei um pequeno reflexo pode ser notado, inicialmente refletindo a luz da lanterna, mas aos poucos pude identificar o meu próprio reflexo. O objeto era um espelho, um imenso e imponente espelho negro.

Continuei a avançar, uma vontade incontrolável me impelia a avançar e quanto mais me aproximava do espelho mais nítido o meu próprio reflexo parecia, com isso algo estranho me chamou atenção o meu reflexo estava utilizando um pijama branco, completo, com direito a botões, gola e mangas longas, algo que eu não estava usando e que jamais usaria, nem mesmo nos meus sonhos mais desconexos. Comecei a reparar em mais detalhes sem deixar de seguir em direção a ele, o meu cabelo estava diferente, volumoso e escuro, a lanterna que pegara na biblioteca na verdade se revelava um lampião a óleo no meu distorcido reflexo.

Quanto mais me aproximava, mais as diferenças ficavam nítidas, porém as feições faciais eram as minhas, como me lembrava nitidamente, o meu rosto arredondado, os lábios carnudos e o nariz pequeno, mas ao encontrar o reflexo do meu próprio olhar um calafrio percorreu todo o meu corpo. Os olhos eram castanhos escuros como os meus, porém o globo ocular era vermelho, um vermelho vivo, intenso e vibrante.

Naquele momento eu tentei recuar, querendo correr desesperadamente em direção a biblioteca, mas o meu corpo não respondia, eu estava completamente paralisado, até mesmo a minha respiração parecia ter cessado. Não consegui nem mesmo desviar daqueles olhos cor de sangue e subitamente aquele ser, pois já não conseguia mais reconhecê-lo como meu reflexo, avançou, andou em minha direção como se nada houvesse entre nós, atravessando sobrenaturalmente o espelho, tentei gritar, mas a voz simplesmente não saiu da minha garganta e ele continuava avançando pacientemente em minha direção.

Nenhum de nós desviou o olhar, nem ao menos piscou, aqueles olhos intensos e rubros eram assustadores, mas ao mesmo tempo tão familiares, era como se eu o conhecesse a anos, como se ele sempre estivesse ali, comigo, porém eu negava a sua existência. Após um momento que pareceu uma eternidade ele estava na minha frente, tão próximo que eu já não via mais nada além dos seus olhos vermelhos. Subitamente ele envolveu o meu pescoço com suas mãos, seu toque era firme e frio, eu cedi quase que instantaneamente diante a sua força. O meu corpo finalmente voltou a me obedecer, porém já era tarde demais, eu tentei desesperadamente afastar as mãos dele do meu pescoço, mas o meu gêmeo maligno se manteve incólume aos meus esforços de libertação.

Eu tentei falar e uma frase quase inaudível saiu dos meus lábios "por favor, não", já não conseguia mais reagir e minha força tinha se esvaído junto com a desesperada frase, eu iria morrer, assassinado por um reflexo retorcido de mim mesmo em lugar perdido dentro do meu próprio sonho. Não havia mais nada que eu pudesse fazer, a fim parecia inevitável, mas por um breve momento eu lembrei e com o último resquício de vida que me restava falei "PAI me ajude".

Silêncio.

Então eu acordei, banhado em suor, ofegante em minha cama, sem pijama e com uma incômoda dor na garganta. Eu não consegui voltar a dormir naquela noite, na verdade eu nunca mais dormi tranquilamente desde então e consequentemente nunca mais voltei a visitar a biblioteca dos meus sonhos.


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