sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Desafio 52 semanas de escrita #02 - Promessas


Olá, caro leitor, hoje trarei um texto que foi um experimento auto imposto, anos atrás a caminho do trabalho pensei "como seria se tentasse escrever um conto do zero, sem uma influencia externa?" com isso nasceu o conto "promessas" que originalmente chamei de "destino", onde busco criar uma narrativa em torno de um guerreiro em fuga que revive memorias quando decide se entregar ao destino. Levei anos para terminar tal texto, confesso que a parte final, principalmente no dialogo entre os "Carl" e "Pietro" não atingiu o desenvolvimento que gostaria, me parecendo um pouco apresada, ficando o desejo de colocar um pouco mais de emoção ali. Quanto aos nomes, escolhi quase que de forma aleatória, logico que tais nomes foram retirados de outras obras, mas eu simplesmente não dediquei tempo para desenvolver os nomes dos personagens ou localizações, afinal como já relatei tal texto foi um experimento visando testar a minha capacidade de desenvolvimento.

Promessas

Ele estava sem forças, era o terceiro dia de uma fuga insana pela fronteira do Grande Reino, no primeiro ele tinha certeza de que despistara os seus perseguidores, porém no dia seguinte ele avistou ao longe uma tropa de cavaleiros que sem dúvida estavam no seu encalço, com isso ele tomou uma difícil decisão, rumar para o sul em direção a cidade mercantil de Mártir, na vaga esperança de que os seus perseguidores fossem desencorajados a persegui-lo pelo deserto de Khang.

No terceiro dia ele percebeu que sua decisão foi um erro, assim como muitas outras antes dessa, pois não havia esperança de atravessar o deserto sem suprimentos, a chances de sobreviver eram mínimas e a falta de água começou a cobrar seu preço já nas primeiras horas sob o sol escaldante. Mas agora era tarde, sua única opção era avançar, pois se retornasse a captura e consequentemente morte eram certas e ele preferia morrer no deserto do que pelas mãos dos cavaleiros do Grande Rei.

Após quase dez horas de fuga sob o sol suas forças se esvaíram, como se sugadas pelo pôr do sol no horizonte, já não conseguia mais prosseguir, precisava saciar a sua sede e recuperar a suas forças, tentou avistar algum abrigo no horizonte, mas nada havia, ao leste os montes que faziam divisa entre o deserto de Khang e o Reino do Sol Eterno permaneciam em silêncio, ao oeste as dunas banhadas com a luz escarlate do entardecer anunciavam o fim de mais um dia e ao sul as montanhas de Bran, que indicavam a localização da cidade de Mártir, não se atreveu a olhar para o norte.

Já não conseguia mais avançar, mesmo com a visão das montanhas ao longe indicando que estava próximo do seu destino e com a providente trégua do calor infernal com a chegada do anoitecer, já não tinha mais forças nem mesmo para buscar abrigo, sentiu suas pernas cederem e como que caísse em um vazio infinito simplesmente desabou sobre as areias ainda quentes do deserto. Era o fim, ele conseguiu resistir por três dias a aquela fuga insana e sem sentido, mas não resistiria por um quarto dia, não sem alimento, não sem uma fogueira, não sem água. Era o seu fim e da sua longa jornada por um reino em guerra.

Utilizou as suas últimas forças para se virar e olhar uma última vez para o céu, percebeu que já era noite, as estrelas brilhavam intensamente sobre ele como se quisessem testemunhar o seu último suspiro, nesse momento ele amaldiçoou aquela guerra insensata e sem sentido entre os reinos irmãos e amaldiçoou ainda mais o Rei Justo por arrastá-lo para aquela guerra. “O Justo” sentiu o amargor da ironia, o Rei Justo era amado pelo seu povo, não havia dúvidas, mas não era nada justo ele morrer sozinho no deserto longe na sua terra natal, longe da oficina do seu pai a qual se dedicou por sua vida inteira, não era nada justo ele, um mero aprendiz de ferreiro, ter sido obrigado a se transformar em um guerreiro e lutar em uma guerra que não era sua. A angústia aumentava ainda mais a cada nova lembrança que era despertada, culminando na sua maior perda, na doce Leliane, sua noiva, sua futura esposa e mãe de seus filhos, que agora jamais existiriam.

Lembrou de quando a conhecerá, eles tinham apenas 16 anos, ambos estavam no grande mercado da vila que ficava à sombra do castelo e ambos cresceram na vila, mas estranhamente nunca tinham se visto, ele nunca soube explicar, mas sentiu que já a conhecia e que nada mais ao seu redor importava. A partir daquele momento ele voltou quase que diariamente ao grande mercado, mesmo sem necessidade alguma, apenas para vê-la e era decepcionante quando não a encontrava. Não demorou para descobrir onde ela morava, mas levou meses até tomar coragem para se apresentar. Surpreendentemente ela o comprimentou com um doce sorriso e disse “você é filho do Anthony, o ferreiro e amigo do rei, eu sou Leliane é um prazer finalmente conhecê-lo”.

Tornaram-se amigos quase que instantaneamente e mesmo sentindo que desejava mais ele se contentou com o relacionamento de amizade. Eles se viam com frequência e conversavam sempre que possível na beira do lago, era o seu lugar especial, onde falavam sobre o seu dia, suas vidas e sobre o futuro. Ela sonhava em assumir o negócio do pai que tinha uma grande taverna na vila e quem sabe um dia explorar o mundo fora das fronteiras do reino, ele desejava apenas manter a oficina funcionando, assim como seu pai sempre o fizera e o avô antes dele.

Certo dia ele a aguardava na beira do lago, como de costume, porém Leliane estava demorando, algo sem dúvida tinha acontecido, mas ele não podia simplesmente bater na porta de sua casa e perguntar o que tinha acontecido. Ele esperou por mais de uma hora e quando estava prestes a ir embora ela apareceu, estava de cabeça baixa, nitidamente tensa, mas antes mesmo dele perguntar o que tinha acontecido ela falou, direta. “John, filho do Luca, chefe da guarda, me pediu em namoro hoje” ela o olhou fixamente como se esperasse uma reação, “minha mãe me disse que eu devo aceitar, que já está mais do que na hora de me casar”, ela continuou a encará-lo, ele não esboçou nenhuma reação, mas internamente estava tenso, como nunca estivera. “Droga, ela aceitou, eu nunca tive coragem e ela se comprometeu com outro, venho aqui apenas para dizer que não pode mais me ver”.

“Eu disse não!” mantendo os olhos fixos nele, “Eu não poderia aceitar nenhum pedido sem antes saber a verdade, saber o que você realmente sente”. Por um momento ele não respirou, não acreditando no que acabara de ouvir, “seu tolo, seu completo tolo, ela estava te esperando esse tempo todo”, abraçando-a forte no momento seguinte dizendo apenas “eu prometo nunca mais te fazer esperar”.

Na manhã seguinte ele pediu permissão para namorá-la, o velho taberneiro respondeu entusiasmado “eu não poderia querer um genro melhor”, abraçando-o calorosamente, já a mãe de Leliane o olhou seriamente, deixando claro que não aprovava, mas acabou cedendo, afinal se tudo ocorresse bem em um ano eles estariam casados e ela poderia finalmente se preocupar apenas com os futuros netos.

Então veio a guerra, algo que parecia tão distante se tornou uma realidade, com notícias chegando quase que diariamente sobre as perdas causadas aos reinos do sul devido a investida do Grande Rei. O Rei Justo manteve-se neutro por meses, mas a situação se tornou tão crítica que ele teve que atender aos apelos de auxílio dos reinos vizinhos. O Reino do Norte iria à guerra e o exército real fora convocado. 

Durante um mês ele trabalhou quase que ininterruptamente, a vila inteira se tornou um caos, tudo girava em torno dos preparativos para a partida iminente do exército. Seu pai era o ferreiro real, porém já não conseguia mais produzir, fazendo com que todo o trabalho recaísse sobre ele, foi um período intenso, onde por quase um mês ele trabalhará ajustando as armaduras dos capitães do exército.

Certa manhã ele foi surpreendido por uma visita inesperada. Seu amigo de infância, o qual ele não via a anos, adentrou de forma cautelosa na oficina, seu rosto apresentava um sorriso amigável, mas deixando transparecer um certo nervosismo.

 - Olá, Carl vejo que se tornou um ferreiro tão habilidoso quanto o seu pai.

Por um momento ele olhou de forma incrédula, de todos da família real ele não esperava justamente que o príncipe Pietro viesse à sua oficina.

 - Que o Criador o abençoe vossa graça, no que posso servi-lo?

 - Por favor, Carl, você não precisa dessa formalidade, não me trate como príncipe, mas sim como o seu velho amigo e irmão de armas.

Carl olhou de forma firme para o príncipe, houve um longo e incômodo silêncio, o semblante de ambos revelava que antigas feridas ainda não tinham cicatrizado completamente.

- Vejo que ainda não me perdoou, mesmo após tantos anos e acredite eu teria muito a dizer sobre tudo que ocorreu no passado, mas preciso ser breve, amanhã de manhã o exército real partirá para a guerra e eu os liderarei, não como um aprendiz, não como uma mera figura decorativa, mas verdadeiramente os liderarei, estarei na linha de frente pela primeira vez na minha minha vida, a vitória está inteiramente nas minhas mãos e preciso dos melhores do reino ao meu lado para garanti-la. Por isso, vim cobrar a promessa que me fez anos atrás, preciso da sua espada aos meus serviços.

Carl conteve a ira que sentia ao ouvir tais palavras e disse com dificuldade, mas um controle invejável.

- Você vem cobrar uma promessa? Depois de tantos anos, depois de tudo o que ocorreu, você ousa vir cobrar uma promessa feita na nossa infância, quando ainda éramos amigos? Não Pietro, não somos mais amigos, eu não lhe devo mais nada e mesmo que devesse eu não farei a mínima diferença na sua busca pela glória.

 - Não Carl, você está enganado, os bajuladores da corte dizem que vencerei facilmente o exército invasor, mas a verdade é que estou rumando para um território desconhecido, em desvantagem numérica, com soldados que duvidam da minha capacidade. Eu preciso me cercar dos melhores caso queira obter a vitória.

 - Você já tem os melhores, a guarda real estará ao seu lado e eu sou um mero aprendiz de ferreiro!

 - Você sabe que não é apenas um ferreiro, nós treinamos juntos por anos e você sempre foi melhor do que eu, separados éramos incansáveis e juntos éramos imbatíveis. Você me prometeu que estaria ao meu lado quando a hora chegasse, pois a hora chegou e eu preciso de você.”

 - Eu não posso ir à guerra, irei me casar em dois meses, não posso abandoná-la.

 - Você não irá abandoná-la, estamos em guerra, ela irá compreender e se ela te ama o suficiente irá te esperar. Uma promessa foi feita, Carl, uma promessa dita aos pés do trono e em nome do Criador, uma promessa inquebrável. Eu preciso de você Carl, eu preciso de alguém de confiança ao meu lado e não existe ninguém em quem confio mais do que em você, não importa o que aconteceu no passado, sei que ainda posso contar com a sua lealdade.

Por um momento Carl ponderou, por mais que ainda houvesse rusgas entre eles, a promessa não poderia ser quebrada, pois foi feita em nome do rei e em nome do Criador, ele tinha que manter a honra, manter a sua palavra, mas para isso ele teria que quebrar outras promessas.

Na manhã seguinte ele contou a Leliane que iria à guerra, ela não disse nada apenas o olhou intensamente como que implorando para que ele não fosse. Ele a abraçou forte e uma nova promessa foi feita. “eu retornarei, em nome do Criador, eu retornarei, não importa o quanto tempo leve eu retornarei”. Mais nada foi dito.

Poucas horas depois, Carl estava partindo vestindo uma armadura completa forjada décadas atrás pelo seu pai, ele avançava em frente ao exército, ao lado direito do príncipe Pietro. No portão sul da cidade a população exaltava e se despedia do príncipe e sua guarda, em meio à multidão Carl viu Leliane e com um semblante calmo pode ler em seus lábios “eu te esperarei”.

Ele já não tinha certeza quantas estações tinham se passado desde então, desde o dia que fizera a sua promessa para a doce Leliane. Sabia apenas que não conseguiria cumpri-la e se perguntou se ela ainda estava esperando pelo seu retorno, ou se já tinha se casado com o filho do velho Luca. Ele jamais saberia, pois morreria no deserto a quilômetros de distância da velha vila, da oficina de seu pai e da sua amada Leliane. Uma última vez ele amaldiçoou o Rei Justo e sua insensata guerra, amaldiçoou a sua lealdade ao príncipe Pietro e até mesmo amaldiçoou o Criador por não conseguir cumprir a sua palavra. Por fim desistiu, fechou os olhos e aceitou o seu amargo destino.

Ele acordou sob o sol intenso da manhã, não sabia como, mas estava em movimento, sabia apenas que não morrerá no deserto e que talvez ainda conseguisse cumprir mais uma promessa antes do fim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário